quinta-feira, 25 de abril de 2013

De qualquer lugar que estejamos a qualquer hora estaremos


Por Rafael Broz

Um dia desses me peguei pensando que casos amorosos, além de uma relação de afeto, sexo e amizade, são também importantes referências comportamentais. Relembrando as pessoas com quem tive algum tipo de relação em minha vida, constatei que todas possuíam uma característica em comum que a mim sempre causou estranheza: elas dormiam com o celular ligado. “Ah, não deixa ligado não”, sempre diz este insone que desliga o aparelho móvel todas as noites devido ao valor que dá para cada minuto de descanso. Elas sempre respondem alguma coisa como: “mas alguém pode ligar”.

É evidente os enorme avanços tecnológicos conquistados nas últimas décadas no campo da telecomunicações. Me lembro que quando criança era necessário o auxilio de uma telefonista para realizar uma simples ligação para a vizinha, Argentina. Hoje uma videoconferência em tempo real pode ser feita gratuitamente de qualquer lugar com um laptop conectado a internet. Email, Facebook, Twitter, Skype, Google, Instagram, Whatsapp e não sei mais quantas ferramentas que duas décadas atrás só habitavam os filmes de ficção e agora, de forma quase natural, já fazem parte de nossa vida nos conectando a tudo e todos a todo o momento.

Seria pretensioso da minha parte tentar indicar aqui as implicações sociológicas da vida online sem um estudo mais aprofundado. O que exponho são apenas simples observações. É seguro dizer que o tempo e o espaço, assim como a produção e os afetos, são envolvidos e transformados por esse fenômeno tão representativo do século XXI. Não se encontra mais desencontros, algumas distâncias encurtaram, o controle é mais capilarizado e o ponto do trabalho tornou-se a bateria do celular.

Vivemos conectados por ferramentas eletrônicas, é uma realidade inescapável, mas que tipo de conexões queremos estabelecer? Convenhamos que existe uma boa diferença entre conversar com um amigo que mora longe e receber o telefonema do seu chefe num domingo de manhã. Podemos abrir nossas caixas de e-mail ler uma mensagem de amor e em seguida um anúncio de um método novo de alongamento peniano. Quem sabe o que nos espera na próxima mensagem? Estamos sempre aí para tudo e todos, somos diversas identidades cibernéticas de fácil acesso e controle.

Longe de mim querer estabelecer uma apologia a qualquer tipo de primitivismo ou saudosismo tolo. A luta contra os avanços tecnológicos do campo da comunicação, além de uma causa perdida, trata-se da manifestação de uma patologia onde o individuo cria um passado idealizado que supostamente é ameaçado por esses novos adventos. A maneira que me parece mais razoável de se lidar com a questão é nos apropriarmos das infinitas possibilidades positivas e maximizá-las ao passo que tentamos nos desviar dos efeitos negativos de toda essa revolução digital. Portanto é necessário questionar o fenômeno de conexão ilimitada e de superexposição para poder usufruir das benesses. Eu, por aqui, sigo deixando meu celular desligado enquanto durmo.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Como vai o Paraguai ?


Por Victor Serebrenick

Neste último fim de semana a República do Paraguai elegeu seu novo presidente, Horacio Cartes, do Partido Colorado, e assim voltou aos trilhos do caminho marginal da história do nosso vizinho.

Desde sua independência em 1811 se distanciava comercial e politicamente dos outros países da região em termos estratégicos, ao se isolar seus líderes buscavam não depender dos gigantes Brasil e Argentina e ao mesmo tempo não ser engolido pelos mesmos. O presidente Carlos Lopez modernizou o país, criou imprensa própria, priorizou campos como a educação e a cultura no país, além de diminuir seu isolamento.

Infelizmente a morte de “Don Carlos” em 1862 deixou como herdeiro seu filho, Solano Lopez, criado para ser o novo líder de Assunção o futuro ditador conheceu na Europa o que havia de mais moderno em nacionalismo expansionista, Napoleão III, e assim buscou trilhar os mesmos caminhos do colega francês.

O governo de Solano Lopez operou uma escalada no investimento militar e buscou uma estratégia para o grande Paraguai. Nesta época haviam diversas disputas fronteiriças na região, em sua maioria entre repúblicas hispânicas e o Brasil, além da guerra civil no Uruguai, na qual o vizinho ao norte usava armas e dinheiro, para escolher o vencedor e manter suas influências na então província Cisplatina.

A escolha do Brasil como inimigo foi a estratégia de Solano para reunir os hispânicos contra o Império tupiniquim, em 1864 tropas paraguaias invadem o Brasil e ocupam parte do Mato Grosso. A esperada ajuda militar das repúblicas hispânicas não veio e em seguida formou-se uma tripla aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai contra o governo López, tendo como principal força o primeiro, que faria de tudo para retirá-lo do poder, e assim o fez. A Guerra do Paraguai, apelidada de Maldita Guerra no livro de Francisco Doratioto, levou à morte de milhões de soldados e de um país inteiro.

Desde então o país passou por mais um grande confronto militar, a Guerra do Chaco, diversas guerras civis (1904, 1908, 1912, 1920, 1921, 1922 e 1947) e enfim, a mais longa ditadura da região com o general Stroessner que ficou no total 35 anos no poder. O marginalidade do país se consolidou, foi o único aliado da África do Sul na crise do sistema de apartheid, possui a maior concentração de terras no mundo e ainda funciona como centro de operações de contrabando e narcotráfico na região.

A eleição do ex-bispo Fernando Lugo em 2008 retirou do poder o partido Colorado, que estava há 61 anos no poder, deu espaço para uma nova política no país seguindo a “onda progressista” na América do Sul em que elites históricas tem perdido espaço para representantes populares, como no Brasil, Venezuela, Bolívia e Equador. A falta de apoio ao presidente no legislativo levou à uma crise que resultou num golpe parlamentar, chamado de impeachment pelos golpistas e pela grande mídia.

O nova presidência do Paraguai reinstaura a hegemonia política do partido Colorado e tenta esquecer o golpe contra Lugo, o vencedor do pleito representa o que há de pior no país, o maior contrabandista de cigarros para o Brasil, um empresário multimilionário que usa a pátria paraguaia como balcão de negócios escusos.

domingo, 14 de abril de 2013

Os quatro cavaleiros do esquerdismo

Por Rafael Broz

As pessoas ingênuas e totalmente inexperientes pensam que basta admitir os compromissos em geral para que desapareça completamente a linha divisória entre o oportunismo contra o qual sustentamos e devemos sustentar uma luta intransigente, e o marxismo revolucionário ou comunismo. Mas essas pessoas, se ainda não sabem que todas as linhas divisórias na natureza ou na sociedade são variáveis e até certo ponto convencionais, só podem ser ajudadas mediante o estudo prolongado, a educação, a ilustração e a experiência política e prática”¹.

O esquerdismo, a doença infantil do comunismo, descrito por Lenin, compartilha muitas caracteríscticas com o apocalipse profetizado pelo apóstolo João no último livro do Novo Testamento. Assim como o apocalipse, o esquerdista dividirá de forma autoritária o que é o bem, seus pares, e o mal, todos o resto. Suas palavras supostamente são a própria revelação. Sua ascensão, a revolução comunista, é entendida por ele como o retorno do messias salvador, uma necessidade histórica pela qual o esquerdista aguarda impaciente assim como o cristão aguarda o arrebatamento. Sendo assim, lhes apresento aos quatro cavaleiros do esquerdismo.

O primeiro cavaleiro traz consigo a separação entre teoria e prática. A tradição marxista sempre deu um imenso valor à práxis, especialmente o próprio Marx. Não é preciso ir à fundo em suas obras para perceber que se há um divórcio entre teorização e prática política sua militância estará gravemente comprometida. É impossível transformar as circunstâncias dos nossos viveres sem teorizar, tampouco é possível apreender de forma meramente contemplativa uma vez que a “vida social é essencialmente prática”². Mesmo assim são muitos os que se isolam da prática política, seja se internando na religiosidade, na academia, na burocracia ou em alguma causa.

O segundo cavaleiro traz o purismo. Ignorando que a política se dá nas relações e como tudo na vida é repleta de contradições, o purista prega justamente o contrário e se declara virtuoso, não passível de erros, guardião das mais belas tradições. Seu comportamento corresponde ao de uma velha beata que passa o dia na janela a vigiar as ações dos vizinhos. A denúncia se torna então a sua única ferramenta de ação política: “pelego, revisionista, traidor”, grita o purista para tudo e todos.

O terceiro cavaleiro traz o sectarismo. Uma vez que o purismo já é dominante torna-se impossível dialogar com qualquer que não seja eu mesmo ou os meus. Expressões como construir pontes, estabelecer trocas e aprender com o diferente já não significam nada para aquele que se sente possuidor da verdade enquanto ser iluminado. Sinais de paranoia também são frequentes. As organizações sectárias “acabam funcionando como seitas, nascidas da cisão e condenadas à cissiparidade, portanto fundadas sobre uma renúncia à universalidade”³.

O quarto e último cavaleiro traz consigo a sabotagem. Já estando enraizados o purismo e o sectarismo, frutos da separação entre a teoria e a prática, a sabotagem é uma consequência quase que natural. Qualquer processo dirigido por qualquer outra agrupação que não a sua, deve ser combatido - pela denúncia - pois nada que não venha dele e dos seus pode ser considerado puro o suficiente.

Após a passagem dos quatro cavalheiros, o agora esquerdista total, contaminado pela paranoia e pela ira, desorientado no seu fundamentalismo, comumente acaba flertando ideologicamente com as práticas e discursos conservadores. São muitos os que enveredaram por esse caminho e muitos outros que acabaram internados em alguma torre de marfim. É sempre desagradável, pois poucos seres são tão chatos quanto um ex-comunista.



¹ Lenin -Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/cap05.htm#topp
² Karl Marx - A ideologia alemã
³ Pierre Bourdieu – O poder simbólico

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Das fossas nasais: uma crônica olfativa da servidão e da liberdade

Por Gabriella Lange


Há pouco tempo fui à Central do Brasil tirar uma enésima via da carteira de identidade. À parte as óbvias e brutais chateações burocráticas envolvidas num dia desses - filas injustificáveis e funcionários justamente mal-humorados -, o que mais me oprimiu foi o ar fétido dos corredores subterrâneos naquele formigueiro humano. 


Quase vomitei, de verdade. As paredes da Central parecem transpirar o mijo dos bêbados que se deixam ficar nas plataformas. Cada esbarrão no meio da gente trabalhadora deixa um traço de suor estranho nos braços, evidência pegajosa da exploração coletiva que se agarra à pele violando o sensível limite entre o eu e o outro. (Somos dados aos fluidos alheios apenas com uns poucos). O ar que se respira na Central é virulento. A mistura de amônia com fezes e sujeira e frituras e joelhos e pêlos e mendigos sem banho se compôs extremamente mal em meu nariz, e tive que me esforçar para segurar o enjoo. 


Confesso que meu nariz sempre foi particularmente intolerante: quando criança, não aguentava ficar cinco minutos em um posto de gasolina, e queria chorar toda vez que o pivete do meu irmão ia ao meu quarto, sorrateiro, sabendo da minha afetada disposição, com o único propósito de soltar uns gases podres ali e ficar rindo enquanto eu vomitava.


De modo que, naquele dia, abatida e enjoada (e sem identidade), fui encontrar um amigo mais tarde e acabei lhe contando o porquê de tanta irritação. Ele achou engraçado, claro, e não perdeu a chance de gracejar às custas dos ocasionais discursos esquerdistas que eu faço. Começou a espalhar por aí que a "madame" ficava enjoada com "cheiro de pobre".

Eu ri. E depois pensei. Seria a repugnância ao ambiente popular da Central uma espécie de microfascismo escondido em minhas fossas nasais? "Mendigos sem banho", quem disse isso? Há muito tempo me convenci de que fora da compaixão mais espontânea só se pode rastejar com os moralistas, e eu nunca quis julgar a vida: senti-la, isso sim.

Sei bem que não tenho "horror a pobre" (um outro amigo, entrando na pilha, agora me chama de Caco Antibes). Entretanto, seria apenas um clichê imbecil dizer que gosto de sentir o "calor humano" de uma condução lotada, ou a "experiência antropológica" de, sei lá, passear em meio às valas a céu aberto das favelas cariocas. Não gosto. Não odeio tampouco, mas a mim é deprimente: uma questão de afetos. Para evocar Spinoza, diria que tudo é corpo: encontro de corpos, que se definem pelo agir e padecer de uns sobre os outros, composição e decomposição de relações. Variação contínua da linha afetiva do indivíduo, que ora se alegra, compondo com outros corpos o aumento comum da potência para a ação e o pensamento, ora se entristece, entrando em relações que mitigam-lhe a capacidade de agir e de pensar. Cheirar é sempre um emocionar-se. A fragrância nos cabelos do ser amado fortalece a atração, e o perfume do bacon frito no hambúrguer desperta a fome. Um odor qualquer puxa uma memória qualquer. O olfato é, mesmo, o mais primitivo e o mais nostálgico dos sentidos;Pois bem. Se tenho um mau encontro com um queijo estragado na geladeira, é porque boa parte de minha potência de perseverar no ser é alocada para o esforço demente de tentar segurar o almoço no estômago. Claro está, não me sobra muita energia para fazer nem criar muito mais, ao menos enquanto dura o afeto-náusea. Não é que o queijo seja intrinsecamente mau; é que o prazo de validade vencido me entristece - enfraquece a vitalidade de meu corpo -, e isso é tudo. 


Parte-se da sensibilidade para chegar à beatitude, e a ética (assim como a política), deve ser sobretudo uma estética. Que espécie de afetos são modulados no esgoto? Homens-rato e mulheres-barata, impotentes para a ação, incapazes de aspirar à liberdade comum, acuados que estão no esforço animal da sobrevivência nos bueiros. Parece-me clara a função perversa de se manter a multidão empobrecida em um regime de condições insalubres e degradantes: é que o poder tem necessidade de entristecer a vida, para então poder julgá-la. Trata-se de uma tristeza igualmente desejada por tiranos, escravos e bufões, por todos aqueles que "não param de meter o nariz em uma merda qualquer", como disse Deleuze. Por todos os opressores, juízes da vida e defensores da moral, que precisam encontrar sempre "uma pequena ignomínia, uma ignomínia na ignomínia, e aí tornam-se rosas de alegria: quanto mais nojento, mais contentes estão".*

Diria então ao meu caro amigo, agora: o cultivo dos sentidos não pode ser exclusividade dos círculos opressores da riqueza: a arte não pode ser privatizada. Ela pertence ao próprio movimento de criação da vida e de ação potente da multidão. A estética, enquanto potência sensível de composição do comum, é realmente indispensável ao exercício da liberdade. No fim, digo-lhe que não é o cheiro de pobre que a madame aqui não aguenta; é o cheiro da pobreza. 


*Gilles Deleuze, Cursos sobre Spinoza - Vincennes, 09/12/1980

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Seja Marginal, Seja Herói

Por Victor Serebrenick


À medida que nos aproximamos dos megaeventos no Rio de Janeiro a lista das remoções só aumentam: Vila Autódromo(28 anos de ocupação), Providência(116), Mangueira(33), Favela do Sambódromo(27), Vila das Torres(53), Belém-Belém(41), Vila Harmonia(102) e a lista não para mais. Os removidos são os anti-heróis, os marginalizados na marcha do glorioso futuro da cidade, surgem novos todos os dias, os últimos a terem destaque foram os moradores do Horto, muitos são idosos que nasceram no local e hoje são chamados de invasores na capa do jornal O Globo.

Nos anos 1960 no bairro do Maracanã, nas cercanias dos finados Museu do Índio e estádio Mário Filho, onde hoje está a UERJ havia uma comunidade chamada Favela do Esqueleto, lá habitava um malandro de currículo, chamado Cara de Cavalo. Traído pelo bicheiro foi perseguido por um grupo clandestino de policiais, após matar o delegado na tentativa de fuga acabou criando um dos mais notórios grupos de extermínio em torno da sua morte.

O marginal não podia sobreviver, com mais de cem disparos foi esburacado pela Scuderie Le Cocq, sendo ele a primeira vítima deste esquadrão de extermínio que chegaria a ter alcance nacional e sete mil membros, tudo isso com apoio do regime militar; em São Paulo, o líder do grupo se transformou no mais temido torturador do regime, o delegado Fleury; e foi um de seus presidentes, o delegado e deputado Sivuca, que cunhou a frase “Bandido bom é bandido morto”, que segue “e enterrado em pé pra não ocupar muito espaço”.


A febre remocionista nos anos 60 foram iniciadas no governo de Carlos Lacerda e passou pela Praia do Pinto e Catacumba, além dos 495 barracos Favela do Esqueleto, cujas famílias foram espalhadas pelo subúrbio e zona oeste da cidade:

“Muitas pessoas eu nunca mais encontrei. Naquela época, tinha o malandro, o jogo de roda, ninguém na favela conhecia a cocaína. O clima era muito tranqüilo” Dilmo, ex-morador.

Seu colega e contemporâneo das quadras da Mangueira, Hélio Oiticica usou a imagem impactante do cadáver para produzir  a "Homenagem à Cara de Cavalo" e depois o poema-bandeira à seu amigo Seja Marginal, Seja Herói. A sociedade descrita por Oiticica através de suas obras marginaliza e mata seus cidadãos, o anti-herói é aquele que deve ser varrido para debaixo do tapete.
Oiticica e o bólide "Homenagem à Cara Cavalo"
O avanço do projeto de cidade global carioca atinge diretamente os setores mais vulneráveis da sociedade e expõe uma falsa política direitos humanos, já que não é para todos, em que as vítimas são transformadas em vilões pelo governo e pela mídia. A privatização e sucatização dos serviços públicos nos rebaixa à todos ao status de sub-cidadãos cariocas, regidos pelos interesses da  especulação imobiliária à frente dos nossos direitos. A resistência às remoções cria os heróis da marginalidade na sua luta para não sumir, na nossa luta para não sumir.


"Seja Marginal, Seja Herói", de Hélio Oiticica

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Aquela Dívida Está Bem Viva - I


Por Victor Serebrenick
         
        Em 1982 o México se declarava falido e assim se dava início um efeito dominó no, então, Terceiro Mundo. Passando por diversos países se via o mesmo cenário: o Estado não tinha como pagar suas dívidas externas e teria de pedir ajuda aos “amigos ricos”, reunidos em torno do Fundo Monetário Internacional. A “Crise da Dívida” nasceu na busca terceiro mundista de desenvolvimento econômico a qualquer preço, reforçou a dependência histórica do Sul, pobre e colonizado, frente aos seus antigos senhores do Norte e atingiu principalmente os menos beneficiados pelos investimentos que criaram a dívida. No auge do desenvolvimento setentista o general Médici deu a dica: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”.
Pode-se começar essa história de outro jeito: nos idos dos anos 1970 nos países pobres o lema era expandir suas economias para assim poder bancar a inserção do país na divisão internacional do trabalho, a ordem do dia era investir e investir do jeito que fosse. A crise do petróleo de 1973 gerou os chamados petrodólares, em que o aumento do preço do óleo enriqueceu os produtores que inundaram o sistema internacional de liquidez(muita grana), mais especificadamente os bancos estadunidenses e britânicos; essa montanha de dinheiro foi emprestada à países que queriam investir pesado na expansão econômica, como o nosso Brasil ditatorial. Em 1980 mais uma crise do dólar causada pelo conflito Ocidente-Oriente Médio faz subir o preço do petróleo e assim a liquidez internacional; seguindo a lógica economicista a liquidez levou à inflação, por isso o BC dos EUA aumenta seus juros e quem pegou dinheiro com eles agora tem aquela dívida aumentada, aliada à queda das commodities a situação fica dramática para os endividados e chega ao ponto de partida do texto, uma crise geral dos pobres.
            A crise da dívida assolou o terceiro mundo com inflação, estagnação e o seu “casamento”, a temível estagflação, em que o trabalhador não tem aumento e tudo fica mais caro. A década de 1980, que ganhou o apelido de perdida, foi o símbolo dessa situação, que além de levar a bancarrota limitou a independência dos países afetados que deveriam seguir à cartilha neoliberal do FMI, que facilitava o pagamento dos juros dos empréstimos, mas não buscava o desenvolvimento social junto com o "acerto das contas", e aí está o problema. Nesse contexto começa também a luta para anulação das dívidas externas dos países pobres por meio do movimento anti-globalização, segundo o geógrafo Milton Santos, um dos teóricos do movimento, a integração econômica no fim do século XX nos levou à uma “globalização como perversidade” (2000). A centralidade do desenvolvimento econômico per se do livre capitalismo moderno gera uma evolução negativa por meio do acirramento do comportamento competitivo,
Em 2013 o mundo pobre continua a ter de pagar dívidas externas, que limitam sua independência e desenvolvimento. Em 1996 foi criada a iniciativa Países Pobres Muito Endividados, em que os países do G7, por meio do FMI e Banco Mundial visam resolver esse problema com anulação da dívida em seis anos. Infelizmente essa ideia parece ter desvanecido e se limita a fazer os pagamentos acontecerem, implementando continuamente sua cartilha neoliberal, que segundo relatório da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas impede a implementação de serviços sociais básicos à população, expõem os fracos mercados à concorrência internacional e assim continua o ciclo da dependência precária.
                   

O Brasil, por meio de uma política de aliança liberal nos governos PSDB-PT, cresceu sua poupança externa, parece ter aprendido a lição dos anos 1980 e não sentiu as crises do Norte do mesmo jeito dos que devem mais do que tem. Ao mesmo tempo que o país se adequa à regras que um dia o PT e toda esquerda chamavam de criminosas em relação ao povo, o governo advoga a anulação da dívida de países muito pobres ao dar o exemplo perante certas dívidas africanas ao Brasil.
O endividamento é mais que um problema econômico, faz parte de um sistema em que “endividar países periféricos é a aliança que se estabelece entre empresas, bancos e Estados dos países centrais” (BENAKOUCHE, 2013)A luta, atualmente institucionalizada no Comitê para Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), pela anulação das dívidas externas dos países pobres é um passo muito importante para os países que lutaram com vidas por independência política anos atrás e ainda buscam maior soberania sobre seus futuros.

PS: Sobre os problemas da dívida brasileira falamos depois.



SANTOS , Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, Rio de Janeiro, Record, 2000.
Os Números da dívida 2012. http://cadtm.org/Os-numeros-da-divida-2012
BENAKOUCHE, Rabah. Bazar da Dívida Externa Brasileira, São Paulo, Boitempo, 2013.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Encarar a história é necessário


Por Rafael Broz      

          O presente de uma sociedade nada mais é do que fruto de um amontoado de ruínas enxergado por nós como uma cadeia de acontecimentos que conveniamos chamar de história. Queira ou não ela sempre estará aqui sendo “objeto de uma construção cujo o lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”¹. Ninguém foge a história.
            Há diversas formas de uma sociedade lidar com sua história, mas podemos dividir grosseiramente entre a consciência e o recalque. Na primeira forma ela é encarada, ainda que de forma distinta, entre opressores e oprimidos. Na segunda forma a sociedade, por diferentes motivos, não consegue encarar sua história de frente e a recalca. O recalque não quer dizer que a história não está lá, ela apenas não consegue ser acessada de forma consciente e portanto continuamos a viver o amontoado de ruínas simulando não conhecê-lo.
            A sociedade brasileira é recalcada. É como se jamais tivéssemos vivido o genocídio indígena  a escravidão e a ditadura civil-militar. É como se estivesse lá, num passado remoto e inacessível sem nenhuma relação com a realidade das coisas atuais, o agora. Será que é só uma triste coincidência 69,1% dos homicídios de jovens entre 2002 e 2010 terem vitimados negros e negras enquanto a brancos e brancas são 30,6% dessa estatística ²?  
            Sem encarar a história é impossível transformá-la. Defender as cotas raciais nas universidades públicas é confrontar quatro séculos de escravidão que produziram uma sociedade racista da qual o negro e o índio sempre foram excluídos enquanto portadores de direitos. Apoiar a demarcação de terras indígenas e quilombolas é abraçar o direito desde sempre usurpado desses povos às suas terras, suas culturas, suas vidas.
            As atrocidades contra minorias não são um privilégio nosso. Deste modo podemos nos inspirar na ousadia de experiências alheias que buscam se relacionar de forma clara e aberta com a história. É o caso da Alemanha em relação às vítimas do nazismo, da Argentina ao julgar os militares envolvidos em assassinatos e torturas e dos EUA que criou leis de proteção adicional aos direitos civis de negros em estados com histórico de racismo. 
            Que país é esse onde coisas como essas ainda precisam ser ditas? Um que não encara a própria história mesmo que as cicatrizes estejam alí escancaradas implorando por algum cuidado.     

¹ Walter Benjamin – Sobre o conceito da história
² Mapa da violência – A cor dos homicídios no Brasil. http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf

Linha Editorial


 A mídia tradicional padece frente às (já não tão) novas tecnologias. O seu bloqueio oligopolista aos poucos é perfurado e atravessado por outras vozes que não seguem o mesmo ritmo tocado pela velha banda. Outras noções, práticas, afetos, desejos e posturas vem conquistado algum lugar, mesmo que relativamente pequeno, no mundo da comunicação. É nessa brecha que embarcamos e tentamos ser mais uma perfuração no muro que impede o acesso de todos à diversidade, ao debate e à crítica. 

  Não temos pretensões de expor nenhum tipo de falsa neutralidade. Somos de esquerda, críticos e radicais. De esquerda pois lutamos para a superação de todo e qualquer tipo de opressão. Críticos pois acreditamos que a humanidade constrói sua própria história logo nada é mais importante do que sempre questionar de que forma fazemos isso. Radicais pois pretendemos compreender as coisas pela raiz. O nosso norte é o sul, as nossas ideias estão atreladas às nossas práticas e a única coisa que queremos conservar é o nosso desejo por mudanças. 

 E a cachaça? A cachaça é a alegria que uma certa esquerda antiquada rejeita. É o popular, a confraternização, o encontro, o gozo compartido, a alteração de consciência. Numa garrafa de cachaça reside muitas histórias, sentimentos e planos.



"Não conheço um brasileiro, mesmo cheio de chilique, que ignore o santo cheiro de uma pura de alambique"