terça-feira, 15 de julho de 2014

O judeu e a antítese

Falar de Israel é muito difícil para mim. Um misto de emoções se confunde à análise política. Cresci num lar judaico, assim como o colégio e como a maioria das amizades que tinha. Lembro-me das bandeirinhas azuis e brancas desde cedo - elas representavam o orgulho de todos nós. Apesar dos traumas que levaram nossas famílias a fugir da Europa ou de países árabes, agora tínhamos um lar.

Na juventude fui ativo no movimento sionista de inspiração socialista, com dezenove anos fui passar um ano de intercâmbio na terra prometida, dividido entre o deserto em Beer Sheva e a Babilônia que é Jerusalém. O tempo me fez abandonar esse caminho. Segui como um personagem de Moacyr Scliar que, após ficar a vida inteira com uma mala pronta para fugir em caso de perseguição, é roubado e, assim, “já não podia mais fugir”. Segui o caminho do próprio autor e abrasileirei meu judaísmo acomunado sem perder a ternura.

Israel mistura as mais diferentes inspirações político-filosóficas. É uma democracia que toma conta dos que não sabem votar/decidir “direito”; sua sociedade é rica e desigual, mas isso não importa quando somos todos iguais, ou mais iguais. O país foi berço de uma impressionante geração de experiências de coletivismo voluntarista com inspiração em ideias socialistas de imigrantes do leste europeu no início do século XX, em um quase autonomismo colonizador que se desenvolveu junto ao movimento nacionalista. Em Israel, esquerda e direita têm significados diferentes dos que entendemos - esquece-se da França e passa-se a tomar posicionamento em relação à guerra, negociar ou não negociar -, e a contradição segue quando, historicamente, a esquerda faz a guerra e a direita faz acordos de paz.

Pela minha perspectiva é difícil falar sobre a Palestina, estive tão perto e tão longe. Conheci Sderot, a cidade mais atingida por mísseis em Israel. Quando vi o muro, o coração por algum motivo gelou, assim como parece ter acontecido à gente que vive ali. Ao frequentar a cidade antiga de Jerusalém atrás dos quitutes dos árabes, me empolguei com a ideia de viajar à Octoberfest de Ramallah. A festa era patrocinada pela única cerveja dos territórios ocupados, que, segundo o fabricante, fecharia as portas em breve pela impossibilidade de exportar seu produto depois de aumentarem as restrições de segurança. Mas ficou tudo no sonho - o medo do outro era gigante.

A inclinação socialista do meu movimento, que normalmente se limitava ao coletivismo, me levou a conhecer os beduínos. Fui professor de inglês numa colônia de férias na aldeia de Hura, onde nos comunicávamos em hebraico para ensinar a terceira língua das crianças, que respeitavam, mas pouco confiavam nos voluntários judeus. Foi na mesma época que estourou a segunda guerra do Líbano, em julho de 2006. Nunca vou esquecer o dia em que os soldados foram sequestrados e deu-se início ao conflito, ou depois, quando meus alunos foram alvos de bullying por serem árabes num parque de diversões, ou quando os mesmos alunos cantaram a música do Hezbolah pra mim e pros meus colegas como vingança. Sob conselhos de uma ótima israelense que trabalhava com os beduínos, entendi, depois do sofrimento, que eu estava aprendendo ali e quem sofria eram eles.

Em Israel tenho família e amigos. O mais próximo deles me enche o saco constantemente pra ir visitá-lo, conhecer sua casa, sua vida. Não volto desde 2006. Já fiz planos, mas admito a dificuldade extra. Meu carinho continua, mas vejo aqueles que moram lá anestesiados em relação ao conflito, querendo apenas continuar a viver suas vidas em paz e tranquilidade e deixando ao exército a tarefa de resolver o “problema palestino”. A narrativa colonialista de inferiorização do outro justifica as atrocidades contra os palestinos, que, taxados de terroristas, ficam de fora do espectro dos direitos humanos dos valores de uma sociedade moderna ocidentalizada, como proclamada pelos próprios israelenses.

A brilhante Hanna Arendt, outra judia desraigada do nacionalismo, me contou sobre as origens do totalitarismo e eu vi uma sociedade altamente militarizada na qual a ideologia da unidade nacional ficou acima do bem e do mal. Depois ela me repetiu seus conselhos a respeito do julgamento de Eichman, lembrou que punir coletivamente não é justiça e versou sobre a banalidade do mal quando a vida dos outros é despida de valor. Parece um pesadelo, mas a realidade é que meus laços de afeto com Israel se esgarçam com a barbárie da matança.

domingo, 13 de julho de 2014

Não é só um jogo  

*Rafael Broz

Futebol pode ser muitas coisas, menos só um jogo, como uns tantos ainda defendem. Aqui o conceito de fetichismo, tal como concebe Marx, me parece muito apropriado para a análise. Marx dizia que as mercadorias carregavam consigo, de forma abstrusa, relações sociais. Assim também é o futebol. Não se trata só de um jogo, de um evento, de um estádio (jamais me renderei a babaquice marqueteira que é chamar estádio de “arena”), estamos falando do esporte mais popular do planeta, de uma atividade que mobiliza bilhões de dólares e de vidas. Futebol é negócio, esporte, arte, política, afeto e o que mais que vocês queiram que ele seja.

A copa do mundo, que foi sim a melhor de todos os tempos, carrega consigo, assim como um cubo mágico, múltiplas faces móveis que podem e devem ser exploradas e deslocadas. Convivem nessa Copa a coreografia do time alemão e os milhares de removidos, a ótima organização e hospitalidade do nosso país e a xenofobia de uns e outros, a redenção do futebol ofensivo e a ultra militarização das favelas, um estado de exceção positivo onde vale abandonar o trabalho e ficar bêbado numa terça-feira à tarde e um estado de exceção negativo onde é possível ser preso pelo simples fato de manifestar-se politicamente. A glória, a vergonha, o êxtase e a humilhação nunca caminharam tão juntos. Nossos sentimentos estão confusos.

O coração e a mente não são camas de solteiro aonde só descansa um. É possível amar e odiar a mesma pessoa da mesma forma que admirar o futebol e estar ativo na luta política ou não, afinal ninguém é obrigado a politizar-se e tomar partido das disputas do país assim como ninguém tem a obrigação de gostar de futebol. A ideia de que existe algum tipo de contradição nessa atitude é tão fantasiosa quanto a carta da Dona Lúcia.

A nossa existência é demasiadamente efêmera e fugaz e o que nos resta são os presentes que a história nos brinda. Me sinto feliz por ter sido agraciado com uma copa do mundo, esse grande almoço de domingo das nações, bem realizada no meu país, pela chance de ver essa brilhante geração de jogadores de diversas nacionalidades e por toda a alegria e diversão que tive nas últimas semanas. Por outro lado sinto que faltou Brasil. Faltou Brasil nas arquibancadas, faltou Brasil em campo, faltou Brasil na política. Que a vitória nos ensine que nosso país pode sim ser tudo que queremos que ele seja, que os brasileiros somos pessoas fantásticas e que nossas culturas são maravilhosas. Com as derrotas devemos repensar nosso futebol, nosso modelo de desenvolvimento, nossas relações.