quarta-feira, 29 de maio de 2013

A Mulher e o Mesmo

*Por André Seibel


O New York Times no início da semana publicou uma reportagem fundamental sobre o Brasil e o Rio de Janeiro. Para tristeza do chorão Sergio Cabral não se tratava do boom do petróleo. Para o pai de família Dudu Paes tampouco falava das belezas cariocas (pelo menos não falou também do seu jab de direita – ufa!). Dilma talvez tenha ficado um pouco chateada, ainda que tenha lavado às mãos para Comissão de Direito Humanos. O título: “Estupros no Brasil provocam debate de Classe e Gênero”.

A notícia seria menos pior se fosse categórica como o título. Na verdade, é pouco provável que na esfera política haja qualquer debate relevante desse tipo ainda que fosse extremamente necessário. O que choca na reportagem é o olhar perspicaz do estrangeiro sobre o nosso evidente e trágico cotidiano. O numero de estupros reportados praticamente dobrou em 6 anos no Rio de Janeiro e não é diferente em outras cidades brasileiras.

É notório que o Brasil evoluiu no que diz respeito a política de combate a violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha, a criação de Delegacias da Mulher, as candidaturas e a última eleição à presidência da República, configuram o reflexo deste avanço. Contudo, como bem demonstra a dita reportagem, a segregação do espaço público que percorre todos os temas, não é diferente também no combate a esta barbaridade.

Todavia, mais relevante é observarmos que esta segregação se desdobra na própria projeção de o quê se deve parecer e para quem se deve aparecer. O tema só se tornou relevante após o não menos absurdo estupro de uma norte-americana quando ela e o namorado entraram numa van em Copacabana há mais de um mês. Eu recordo a reportagem n’ O Globo. As primeiras linhas descreviam o quanto era bonita e caucasiana a jovem e seu namorado, e como saíram do Rio, enojados depois do ocorrido – como se houvesse uma contradição moral-estética dada entre o estereótipo da beleza portado por eles e a violência sexual.

Eduardo Paes proibiu as vans e seus vidros escuros de circularem na Zona Sul. Afinal, nada é mais efetivo que proibir o chapéu, depois que alguém de chapéu cometeu um crime. Enquanto isso em São Paulo, somente no primeiro trimestre deste ano, o número médio é de 34 estupros registrados por dia – crescimento 26% maior em relação a 2012. Confesso que me intriguei com a pergunta que talvez nosso prefeito e governador não se deram o trabalho de fazer: Porque, apesar de um notório avanço dos direitos femininos, estes números aumentam?

Ontem à noite, o convidado do Canal Aberto da Band, programa que geralmente aborda temas em voga e apresenta convidados relevantes, teve então o filósofo da moda Luiz Felipe Pondé. O autointitulado politicamente incorreto no alto da mediocridade de escudeiro da velha classe média, soltou a seguinte pérola: “o feminismo não entende as mulheres”. Não sei o quanto posso estar sendo anacrônico, mas essas frases de efeito que não significam porra nenhuma costumam me deixar chateados.

Quando se dá relevância à mesmice e se cultua o banal com um falso ar de propriedade, parece que a realidade trágica se ofusca diante dos holofotes. Pondé diz para olharmos para aos EUA e esquecermos Cuba. Eu olho para os EUA, pros movimentos dos Direitos Civis, pros seus diversos movimentos feministas, e como estes em suas diferentes nuances contribuíram para a representação da mulher e a ressignificação da mesma na realidade contemporânea. Enquanto que mulheres e homens de todas as idades continuam sendo estuprados, na direção contrária ao avanço de seus direitos. As conquistas se reificam diante do espetáculo.

A ficha parece cair. Enquanto soa subversivo mostrar o verdadeiro protagonismo feminino, mulheres se sujeitam todos os dias ao machismo latente da normalidade, aos idiotas que dizem que as entendem mais do que elas mesmas e as instituições que doutrinam a submissão diante do símbolo indubitável do patriarcalismo. As estatísticas de estupros crescem, na contrapartida que as mulheres ganham voz. Certamente o aumento destes números é também consequência da coragem daquelas que não se deixaram ofuscar diante do silêncio da vergonha, ainda que a barbárie permaneça acontecendo diariamente à sombra dos registros.

Mas há além do impulso, e juntando os pontos de como o discurso falho do falo ganha projeção, há seguramente uma relação com a voz de homens que deixaram de ditar as regras do jogo. A mídia e o senso comum midiotizado sublinham “mulheres mal comidas”, a Marcha das Vadias, dialeticamente responde a altura e com ironia - mesmo sequer tendo o seu espaço merecido na rede.  O que parece restar é a força bruta diante a liberdade pura. Contudo, é absolutamente leviano e utópico pensar que essa liberdade está conquistada ou já faz parte de um movimento estabelecido.

Voltando ao tópico do jornal nova-iorquino, há sem dúvida linhas que separam este estigma. E onde O tema entra na mídia pelo seu próprio caráter fetichista. A violência a uma norte-americana loira de olhos azuis em Copacabana se projeta mercadologicamente, em deformidade com o óbvio ululante – e por isso mesmo muito mais trágico e violento – fato de que brasileiras da periferia são estupradas sem virar manchete. A garota de Ipanema não é menos mulher que a garota da Baixada Fluminense.

O crime se consagra no espetáculo pitoresco quando o representante teme por sujar a imagem da cidade. “Sem insulfilm”, o machismo velado assume sua nuance mais violenta. A antiga capital do Brasil, a cidade que se projeta como cidade global, mostra os dentes do pior provincianismo. Nada pode sujar mais a imagem das mulheres do que se sujeitarem a viver numa cidade que simula sua própria imagem.


Torço para que a ficha caia, antes que caiamos todos no engano de palavras e obras bonitas travestidas de velhas ideias podres.


domingo, 26 de maio de 2013

Com Zizek, nem casamento, nem divórcio




*Por Rafael Broz


Em meados da década de 1960 Che Guevara foi questionado sobre como estava sua relação com Fidel Castro: “com Fidel, nem casamento, nem divórcio”, disse o argentino, que aquela altura começava a perceber os primeiros sinais de sovietização da revolução cubana, ao passo que se encantava com as notícias que chegavam sobre experiência chinesa. Talvez a frase de Che seja a mais adequada para definir minha atual relação com o filosofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek.

Casado com Marx, de caso com Lacan e apaixonado por Hegel, Zizek há algum tempo está na moda. Diferentemente do habitual para um filosofo, quanto mais um marxista, seu nome é visto com mais frequência nos grandes meios de comunicação do que na academia. O professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade da Liubliana tornou-se uma espécie de rock star rebelde que encanta multidões de jovens outrora desinteressados pelos ideais revolucionários dos velhos comunistas. Por outro lado desperta a ira, o desprezo e talvez a inveja de muitos colegas que o acusam de repetitivo e totalitário, entre outras coisas.

De certo, Zizek, dono de uma produção acadêmica considerável em se tratando de quantidade, é extremamente repetitivo em seus temas e metáforas. Seu profundo apego a uma visão de modernidade tradicional, que para muitos já se transformou e para outros nem existe mais, também é fortemente questionável. No entanto seus críticos realmente acertam em cheio quando apontam a total ausência de uma mínima descrição em sua teoria de algum sujeito revolucionário. 

 Zizek também é um personagem, cuja a característica principal é ser um polemista, o que incomoda alguns, encanta a outros e atrai muitos holofotes. De comportamento grotesco, aparência desleixada e hábitos obsessivos, o filosofo gosta mostrar ao mundo que tem um quadro de Stalin na pendurado na entrada de casa e proferir frases como “Gandhi era mais violento do que Hitler”. Na vida acadêmica também gosta de alimentar polêmicas: Antonio Negri, Judith Butler e Ernesto Laclau são suas vitimas prediletas de ataques em longos e interessantes debates. 

Não é só de polêmica, obsessões e metáforas repetidas vive o filosofo. Algumas de suas qualidades devem ser observadas para poder entender o fenômeno que cerca seu nome. Seus livros são de leitura envolvente e vocabulário simples, acessível a qualquer um minimamente familiarizado com as ciências sociais. É uma escolha interessante em contraposição ao academicismo elitista de alguns autores que parecem escrever unicamente para seus pares. A cultura pop, tão renegada pelos marxistas tradicionais, é mais do que presente, é fundamental para a teoria de Zizek, um cinéfilo de carteirinha. Sem dúvida o pensamento marxiano ganhou alguns holofotes graças ao trabalho do esloveno.

Por falar em teoria, não são muito profundos ou originais os temas abordados pelo filosofo, mesmo assim são de grande importância para a esquerda. Em tempos de consenso liberal, Zizek gasta boa parte da sua obra denunciando a farsa do liberalismo político, que jamais cumpriu o que prometeu. Outro tema que permeia suas análises é a crítica voltada às lutas culturais que abandonam a luta anti sistêmica.  Frente a isso ele nos convida a repetir Lenin, acreditar que é possível derrotar o capitalismo – Sistema esse que, segundo Zizek, já está morto; bastaria todos se darem conta disso – ter a ousadia de tentar construir o comunismo. 


Gênio, louco, fascista ou uma farsa, cada um tem uma opinião sobre Zizek. Enquanto isso, seus livros vendem que nem água, sua conta bancária cresce e até personagem de filme ele já virou. Ao mesmo tempo ele não foge da militância: na Grécia esteve durante as eleições para apoiar firmemente o Syriza (coalização de esquerda que é a principal oposição ao governo e a troika) e em Wall Street leu uma carta de solidariedade e incentivo ao movimento de ocupação que lá estava em 2011. Certa vez um entrevistador pediu para que Zizek contasse um segredo e sem titubear ele cochichou: “o comunismo vencerá”.  


Dicas

Leia "Às portas da revolução - Escrito de Lenin de 1917".
Não leia "Como ler Lacan".
Assista "Zizek!" online e com legendas em português clicando aqui.  





terça-feira, 7 de maio de 2013

terror |ô|



Por Victor Serebrenick
s. m.
1. Pavor, pânico, grande medo.
2. Qualidade de terrível.
3. Regime político caracterizado por prisões e morticínios.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

“Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele”. Giorgio Agamben

“O Estado é aquele negócio que tem o monopólio pra te foder”, assim foi traduzido por um intelectual festivo o pensamento do filósofo alemão Marx Weber, que dizia que o governo tem o monopólio legítimo da violência para manter a ordem estatal. A ordem internacional global amplifica o Estadismo moderno como norma totalizante, mas também possibilita a difusão ideias e lutas anti-estabilishment, contra a opressão Estatal.

No fim dos anos 60 militantes do movimento Pantegra Negra nos Estados Unidos já tinham cópias do Manual do Guerrilheiro Urbano de Carlos Marighella, o movimento que rejeitava ser representado por um governo que oprimia explicitamente sua raça foi sabotado com a gangrena da heroína – se isso não é uma arma química não sei o que é – numa ação contra-terrorista do próprio país. Questionar o Estado como uma arma de destruição em massa.

As ditaduras latino-americanas deram aula, “juridificaram” direitinho a situação dos subversivos-terroristas. Todos nossos Bananas de uniforme enquadraram o terror na lei, era um estado de guerra sem inimigo, o adversário era a incerteza do amanhã, o questionamento da realidade, a resistência à opressão; o ressentimento virou política estatal. A lógica da exclusão “terrorifica” a pobreza no Brasil de 530 mil aprisionados.

O neodesenvolvimentismo brasileiro dos megaeventos criou um estado de exceção capitaneado pelo Estado junto ao Grande Capital, com a benção da lei direitos humanos são esquecidos por um bem maior institucional. A defesa dos atingidos já virou perigo ao desenvolvimento nacional; a PL – 728/2011, da base governista (PT, PRB e PP), conhecida também como “AI-5 da Copa” empodera a polícia e a FIFA contra qualquer um que caiba na definição de terrorista, nada clara no redação jurídica, durante as comemorações futebolísticas no país. O direito é marginal na democracia direta do capital.

Marx definiu o Estado como braço repressivo da burguesia, a polícia aplica a lei da elite dominante que se mantém no poder pela manutenção da ordem. Para o mesmo autor, sempre contemporâneo, a modernidade política define-se pela contradição entre Estado e sociedade civil, deste modo, a separação entre vida social e política deve ser suprimida como forma de superação do Estado moderno e consagração democrática. Não existem tipos de pessoas com direitos de tipos diferentes, todos merecem justiça da mesma forma, liberdade da mesma forma, pois é no vácuo dela que se cria o terror, o medo, a barbárie.



quarta-feira, 1 de maio de 2013

Trabalhadora


Por Rafael Broz

Levantou às 5:00, comeu apressada um pão com manteiga e tomou um café quente para acordar. Deu comida e vestiu as crianças para deixa-las na casa da vizinha, que recebe um dinheirinho para levar e buscar elas na escola. O uniforme de trabalho já estava passado desde a noite anterior. Ela mesma passou enquanto assistia as notícias no Jornal Nacional. O vestido iria amassar durante o percurso de uma hora no trem lotado.

-Bom dia, Seu Eduardo.
-Bom dia.

Ela odiava o jeito que ele todo dia olhava para a sua bunda apertada no uniforme justo que é obrigada a usar. O Seu Eduardo era nojento, achava que estava acima de tudo e de todos. O que mais a irritava era o fato de ele se achar um cara legal, um bom patrão ou “um homem de bem”, como ele costuma dizer.

O dia transcorreu normalmente com ela sendo bestializada durante horas de atividades repetitivas e desinteressantes, até que algo ela fez errado e o Seu Eduardo, muito irritado, retrucou:

-Puta que pariu, preto quando não caga na entrada, caga na saída!

Era impossível não se sentir profundamente humilhada, mas de tantas vezes escutar afirmações como essa ela quase já se convencia da veracidade. Às vezes a vontade era de cuspir na cara do Seu Eduardo. O salário dela não representava um décimo do dele, ele é branco, tem amigos importantes, tudo que ela podia fazer era aceitar calada. Aquele salário era imprescindível para criar os filhos com mínima dignidade.

Após mais uma hora sendo amassada no sacolejo do trem, enfim chegou em casa e encontrou as crianças. Só faltava cozinhar a janta, dar banho na meninada e botar para dormir. Só então ela pôde passar o uniforme e assistir o Jornal Nacional.