sexta-feira, 7 de junho de 2013

Por amor à pátria, uma receita de caipirinha?

*Por Victor Serebrenick

A caipira se faz com amor, esterilizado com cachaça, rasgado pela faca afiada, azedado pelo limão, queimado com gelo, adocicado com o coração. A bebida nacional é superior às outras misturas alcoólicas; infelizmente a vulgarização do drinque pela massificação o transforma num gummy de grife de bebedeira; aquele suquinho amargo não é caipirinha, por isso e por amor à pátria, segue a receita máxima da nossa musa tupiniquim.
Pinga branca, sem embalagens muito modernosas de preferência. Escolha limões médios do tipo taiti com a coloração vibrante. Tenha gelo, muito gelo. Deixe o açúcar ao lado. Resgate um copo com largo diâmetro e reto. Qualquer coisa pra amassar e uma bela duma faca sem dentes.
O limão, metade para copo médio e inteiro para copo cheio, deve ter primeiramente suas extremidades retiradas pois ali reside muita fibra que azeda nosso drinque. Corte ao meio e em seguida com dois cortes em formato de ‘v’ retire a fibra branca do meio em cada lado, corte em pequenos cubos e seguimos.
Meia porção do limão no copo, mais o bastante de açúcar pra cobri-lo, amasse tudo. Triture 3 cubos de gelo e jogue-os junto com a cachaça, que deve ultrapassar 100% o nível onde estavam os ingredientes. Amasse de novo.
Mais uns dois dedos de cachaça, uma camada de açúcar, 3 cubos inteiros de gelo, a outra metade do limão e, mais uma vez, amasse. Não hesite em colocar mais aguardente ou gelo pra combinar com seu paladar e fígado, mas lembre que o gelo inteiro serve para suavizar a bebida derretendo enquanto se bebe e o triturado, para ação imediata.

Aí está. Mas, todo gesto deste processo tem de ser feito com carinho. A cachaça não cai, ela é conduzida. O açúcar é borrifado sem “pedrões”. E o mais importante, amasse de forma circular, num procedimento quase transcendental com o fruto, com muito cuidado e sem pressa. Agitar a bebida e trucidar o pobre do limão é pura covardia.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Alergia à verdade – De George Orwell para Amado Batista

*Por Marcelo Moura

No domingo à noite, insone vagando pela televisão, me deparei com o programa da Marília Gabriela, que recebia o cantor e compositor Amado Batista. Por mais incrível que pareça, esse quadro ainda ia piorar bastante. O que parecia ser uma entrevista daquelas de preencher a pauta vazia do jornalista acabou por refletir uma das dinâmicas sociais brasileiras mais amargas: nossa alergia à verdade.

No momento em que parei no canal a conversa girava em torno de um fato até então inédito para mim, Amado Batista foi preso e torturado pela ditadura militar em 1971, pós AI-5. Não sei quase nada dele, só que suas músicas são um saco. Quando associei o contexto da época com a profissão do entrevistado (sem saber que a carreira de cantor só viria depois da prisão) meu primeiro pensamento foi que a imagem que eu tinha sobre o cara ia ganhar alguns pontos positivos, já que a arte na opressão vira uma arma.

O músico deu uma ajudinha pra subversivos e por isso foi preso, achou injusto, mas mesmo assim passou pela rotina de tortura, o que sempre me salta a visão do herói daquele tempo e tem importância redobrada em tempos de abrir os porões da ditadura militar com a Comissão da Verdade, que investiga violações dos direitos humanos de 1946 a 1988 no Brasil. A comissão, desde que foi criada em 2011, avança lentamente para uma tentativa institucional de fazer as pazes na sociedade, mas esbarra no erro renitente do país que fingiu abolir a escravidão, o massacre dos índios e o regime militar, ainda presente na polícia, filha da ditadura.  

Enquanto são reabertos os arquivos, são desmascaradas as mentiras criadas pelos agentes de segurança da época na medida em que “desapareciam” pessoas, prendiam e torturavam à larga escala e fraudavam laudos médicos a cerca das mortes de “subversivos” presos - como é o caso do falso suicídio do jornalista Vladimir Herzog, recentemente investigado pela comissão. As versões da verdade criadas pelos ditadores eram a maneira de fazer com que a população, não enxergasse ao mesmo tempo em que aceitava e corroborava com os excessos de violência cometidos pelo governo, já que o faziam contra aqueles que tentavam uma transformação da ordem vigente num momento futuro. Aqui, a máxima literária orwelliana toma contornos de teoria política: Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.

“1984” de George Orwell é o meu livro preferido. Disparado, difícil tomarem o posto. É brilhante a maneira que o autor digere seu entorno para depois devolver como uma obra de arte capaz de unir o Ser humano e a história tão intimamente. Obrigado a negligenciar a saúde e se submeter a cargas homéricas de trabalho para finalizar o livro, o que foi praticamente um parto que o deixou de cara com a morte, que não tardou a encontrar-lhe em 1950. Não viveu para ver sua utopia se confundindo com a realidade, proibida tanto nos Estados Unidos como na URSS.

A história conta a vida de Winston Smith em uma Inglaterra futurista, sociedade sob a eterna vigia e controle pelo líder do país e de seu único partido, o Grande Irmão. Por meio da contestação à vida ditada pelo partido o personagem começa a enxergar as mentiras sob as quais se sustentam sua nação e passa a crescer dentro dele o genuíno amor pela liberdade e o ódio ao, sempre vigilante, líder. Já na prisão, é submetido à tortura que o leva a um estado totalmente deplorável, sendo finalmente “educado”. Passa a entender que na verdade, ama o Grande Irmão, que é de onde emana a verdade. Um final nada feliz.

Voltando à televisão, foi quando Amado Batista narrava sua prisão que Marília Gabriela o indaga sobre a Comissão da Verdade e a temida prestação de contas. Assim ecoou “1984” e Winston Smith sai da obra de Orwell e senta “de frente com Gabi” para lhe responder que mereceu a tortura. Hoje ele entende, que assim como um pai que precisa educar uma criança, às vezes usando a força, os militares o educaram. Amado batista havia aprendido a ordem, o progresso e a didática da hierarquia militar, de cima pra baixo. Aprendeu na porrada.

Assim como o cantor, grande parte da sociedade brasileira também aprendeu, mesmo que através de “técnicas de ensino mais sutis”. Nosso sistema educacional continua beneficiando apenas as elites enquanto continua a ensinar a passividade com que lidamos com nossas injustiças históricas. Escolas militares, tidas em alto grau como centros de excelência de estudos, ainda ensinam a “Revolução Democrática de 1964”. Nossos meios de comunicação, através dos quais, muitas pessoas são educadas nesse país, ainda se recusam a abrir mão dos benefícios da verdade manipulada. O grande Irmão agradece. Ironicamente, o Big Brother aqui é um sucesso!

“Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente, lograda a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão.”