sexta-feira, 12 de abril de 2013

Das fossas nasais: uma crônica olfativa da servidão e da liberdade

Por Gabriella Lange


Há pouco tempo fui à Central do Brasil tirar uma enésima via da carteira de identidade. À parte as óbvias e brutais chateações burocráticas envolvidas num dia desses - filas injustificáveis e funcionários justamente mal-humorados -, o que mais me oprimiu foi o ar fétido dos corredores subterrâneos naquele formigueiro humano. 


Quase vomitei, de verdade. As paredes da Central parecem transpirar o mijo dos bêbados que se deixam ficar nas plataformas. Cada esbarrão no meio da gente trabalhadora deixa um traço de suor estranho nos braços, evidência pegajosa da exploração coletiva que se agarra à pele violando o sensível limite entre o eu e o outro. (Somos dados aos fluidos alheios apenas com uns poucos). O ar que se respira na Central é virulento. A mistura de amônia com fezes e sujeira e frituras e joelhos e pêlos e mendigos sem banho se compôs extremamente mal em meu nariz, e tive que me esforçar para segurar o enjoo. 


Confesso que meu nariz sempre foi particularmente intolerante: quando criança, não aguentava ficar cinco minutos em um posto de gasolina, e queria chorar toda vez que o pivete do meu irmão ia ao meu quarto, sorrateiro, sabendo da minha afetada disposição, com o único propósito de soltar uns gases podres ali e ficar rindo enquanto eu vomitava.


De modo que, naquele dia, abatida e enjoada (e sem identidade), fui encontrar um amigo mais tarde e acabei lhe contando o porquê de tanta irritação. Ele achou engraçado, claro, e não perdeu a chance de gracejar às custas dos ocasionais discursos esquerdistas que eu faço. Começou a espalhar por aí que a "madame" ficava enjoada com "cheiro de pobre".

Eu ri. E depois pensei. Seria a repugnância ao ambiente popular da Central uma espécie de microfascismo escondido em minhas fossas nasais? "Mendigos sem banho", quem disse isso? Há muito tempo me convenci de que fora da compaixão mais espontânea só se pode rastejar com os moralistas, e eu nunca quis julgar a vida: senti-la, isso sim.

Sei bem que não tenho "horror a pobre" (um outro amigo, entrando na pilha, agora me chama de Caco Antibes). Entretanto, seria apenas um clichê imbecil dizer que gosto de sentir o "calor humano" de uma condução lotada, ou a "experiência antropológica" de, sei lá, passear em meio às valas a céu aberto das favelas cariocas. Não gosto. Não odeio tampouco, mas a mim é deprimente: uma questão de afetos. Para evocar Spinoza, diria que tudo é corpo: encontro de corpos, que se definem pelo agir e padecer de uns sobre os outros, composição e decomposição de relações. Variação contínua da linha afetiva do indivíduo, que ora se alegra, compondo com outros corpos o aumento comum da potência para a ação e o pensamento, ora se entristece, entrando em relações que mitigam-lhe a capacidade de agir e de pensar. Cheirar é sempre um emocionar-se. A fragrância nos cabelos do ser amado fortalece a atração, e o perfume do bacon frito no hambúrguer desperta a fome. Um odor qualquer puxa uma memória qualquer. O olfato é, mesmo, o mais primitivo e o mais nostálgico dos sentidos;Pois bem. Se tenho um mau encontro com um queijo estragado na geladeira, é porque boa parte de minha potência de perseverar no ser é alocada para o esforço demente de tentar segurar o almoço no estômago. Claro está, não me sobra muita energia para fazer nem criar muito mais, ao menos enquanto dura o afeto-náusea. Não é que o queijo seja intrinsecamente mau; é que o prazo de validade vencido me entristece - enfraquece a vitalidade de meu corpo -, e isso é tudo. 


Parte-se da sensibilidade para chegar à beatitude, e a ética (assim como a política), deve ser sobretudo uma estética. Que espécie de afetos são modulados no esgoto? Homens-rato e mulheres-barata, impotentes para a ação, incapazes de aspirar à liberdade comum, acuados que estão no esforço animal da sobrevivência nos bueiros. Parece-me clara a função perversa de se manter a multidão empobrecida em um regime de condições insalubres e degradantes: é que o poder tem necessidade de entristecer a vida, para então poder julgá-la. Trata-se de uma tristeza igualmente desejada por tiranos, escravos e bufões, por todos aqueles que "não param de meter o nariz em uma merda qualquer", como disse Deleuze. Por todos os opressores, juízes da vida e defensores da moral, que precisam encontrar sempre "uma pequena ignomínia, uma ignomínia na ignomínia, e aí tornam-se rosas de alegria: quanto mais nojento, mais contentes estão".*

Diria então ao meu caro amigo, agora: o cultivo dos sentidos não pode ser exclusividade dos círculos opressores da riqueza: a arte não pode ser privatizada. Ela pertence ao próprio movimento de criação da vida e de ação potente da multidão. A estética, enquanto potência sensível de composição do comum, é realmente indispensável ao exercício da liberdade. No fim, digo-lhe que não é o cheiro de pobre que a madame aqui não aguenta; é o cheiro da pobreza. 


*Gilles Deleuze, Cursos sobre Spinoza - Vincennes, 09/12/1980

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