O
New York Times no início da semana publicou uma reportagem
fundamental sobre o Brasil e o Rio de Janeiro. Para tristeza do
chorão Sergio Cabral não se tratava do boom do petróleo.
Para o pai de família Dudu Paes tampouco falava das belezas cariocas
(pelo menos não falou também do seu jab de direita –
ufa!). Dilma talvez tenha ficado um pouco chateada, ainda que tenha
lavado às mãos para Comissão de Direito Humanos. O título:
“Estupros no Brasil provocam debate de Classe e Gênero”.
A
notícia seria menos pior se fosse categórica como o título. Na
verdade, é pouco provável que na esfera política haja qualquer
debate relevante desse tipo ainda que fosse extremamente necessário.
O que choca na reportagem é o olhar perspicaz do estrangeiro sobre o
nosso evidente e trágico cotidiano. O numero de estupros reportados
praticamente dobrou em 6 anos no Rio de Janeiro e não é diferente
em outras cidades brasileiras.
É
notório que o Brasil evoluiu no que diz respeito a política de
combate a violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha, a criação
de Delegacias da Mulher, as candidaturas e a última eleição à
presidência da República, configuram o reflexo deste avanço.
Contudo, como bem demonstra a dita reportagem, a segregação do
espaço público que percorre todos os temas, não é diferente
também no combate a esta barbaridade.
Todavia,
mais relevante é observarmos que esta segregação se desdobra na
própria projeção de o quê se deve parecer e para quem se deve
aparecer. O tema só se tornou relevante após o não menos absurdo
estupro de uma norte-americana quando ela e o namorado entraram numa
van em Copacabana há mais de um mês. Eu recordo a reportagem n’ O
Globo. As primeiras linhas descreviam o quanto era bonita e
caucasiana a jovem e seu namorado, e como saíram do Rio, enojados
depois do ocorrido – como se houvesse uma contradição
moral-estética dada entre o estereótipo da beleza portado por eles
e a violência sexual.
Eduardo
Paes proibiu as vans e seus vidros escuros de circularem na Zona Sul.
Afinal, nada é mais efetivo que proibir o chapéu, depois que alguém
de chapéu cometeu um crime. Enquanto isso em São Paulo, somente no
primeiro trimestre deste ano, o número médio é de 34 estupros
registrados por dia – crescimento 26% maior em relação a 2012.
Confesso que me intriguei com a pergunta que talvez nosso prefeito e
governador não se deram o trabalho de fazer: Porque, apesar de um
notório avanço dos direitos femininos, estes números aumentam?
Ontem
à noite, o convidado do Canal Aberto da Band, programa que
geralmente aborda temas em voga e apresenta convidados relevantes,
teve então o filósofo da moda Luiz Felipe Pondé. O autointitulado
politicamente incorreto no alto da mediocridade de escudeiro da velha
classe média, soltou a seguinte pérola: “o feminismo não entende
as mulheres”. Não sei o quanto posso estar sendo anacrônico, mas
essas frases de efeito que não significam porra nenhuma costumam me
deixar chateados.
Quando
se dá relevância à mesmice e se cultua o banal com um falso ar de
propriedade, parece que a realidade trágica se ofusca diante dos
holofotes. Pondé diz para olharmos para aos EUA e esquecermos Cuba.
Eu olho para os EUA, pros movimentos dos Direitos Civis, pros seus
diversos movimentos feministas, e como estes em suas diferentes
nuances contribuíram para a representação da mulher e a
ressignificação da mesma na realidade contemporânea. Enquanto que
mulheres e homens de todas as idades continuam sendo estuprados, na
direção contrária ao avanço de seus direitos. As conquistas se
reificam diante do espetáculo.
A
ficha parece cair. Enquanto soa subversivo mostrar o verdadeiro
protagonismo feminino, mulheres se sujeitam todos os dias ao machismo
latente da normalidade, aos idiotas que dizem que as entendem mais do
que elas mesmas e as instituições que doutrinam a submissão diante
do símbolo indubitável do patriarcalismo. As estatísticas de
estupros crescem, na contrapartida que as mulheres ganham voz.
Certamente o aumento destes números é também consequência da
coragem daquelas que não se deixaram ofuscar diante do silêncio da
vergonha, ainda que a barbárie permaneça acontecendo diariamente à
sombra dos registros.
Mas
há além do impulso, e juntando os pontos de como o discurso falho
do falo ganha projeção, há seguramente uma relação com a voz de
homens que deixaram de ditar as regras do jogo. A mídia e o senso comum midiotizado sublinham “mulheres mal comidas”, a Marcha das Vadias, dialeticamente responde a altura e com ironia - mesmo sequer tendo o seu espaço merecido na rede. O que parece restar é a força
bruta diante a liberdade pura. Contudo, é absolutamente leviano e
utópico pensar que essa liberdade está conquistada ou já faz parte
de um movimento estabelecido.
Voltando ao tópico do
jornal nova-iorquino, há sem dúvida linhas que separam este
estigma. E onde O tema entra na mídia pelo seu próprio caráter
fetichista. A violência a uma norte-americana loira de olhos azuis
em Copacabana se projeta mercadologicamente, em deformidade com o
óbvio ululante – e por isso mesmo muito mais trágico e violento –
fato de que brasileiras da periferia são estupradas sem virar
manchete. A garota de Ipanema não é menos mulher que a garota da
Baixada Fluminense.
O crime se consagra no
espetáculo pitoresco quando o representante teme por sujar a imagem
da cidade. “Sem insulfilm”, o machismo velado assume sua
nuance mais violenta. A antiga capital do Brasil, a cidade que se
projeta como cidade global, mostra os dentes do pior provincianismo.
Nada pode sujar mais a imagem das mulheres do que se sujeitarem a
viver numa cidade que simula sua própria imagem.
Torço para que a
ficha caia, antes que caiamos todos no engano de palavras e obras
bonitas travestidas de velhas ideias podres.
Muito bom!
ResponderExcluirApenas uma ressalva, como você mesmo já colocou, mas que acho importante reafirmar: pesquisas recentes na área mostram que as estatísticas não estão relacionadas a um aumento do número de estupros praticados, mas sim a possibilidade de Denúncia e principalmente a sua regulamentação com a Lei Maria da Penha e a criação das Delegacias de Atendimento a Mulher (DEAM). O número de estupros, em si, parece vir diminuindo, mas ainda não há estudo empírico que comprove pelo fato de, até 2005 (eu acho) não haver um canal formal de denúncias como a Lei Maria da Penha criou.
No mais, excelente análise!